domingo, 9 de agosto de 2015

Racionalmente guiados pelo medo

Acabara de voltar à sua casa após uma caminhada. Subiu as escadas para tomar um banho. Um clique no interruptor e a luz do banheiro acendeu-se. E eis que em cima do tapete no centro do cômodo aparecia aquela imagem indesejada: uma barata! E das grandes! Será que voava? Por quais esgotos já havia passado? Um temor - semelhante aquele que tinha ao andar em ruas escuras à noite e passar por estranhos - resplandeceu em seu semblante.
O duelo parecia promissor. De um lado: 1,78m com polegar opositor, bípede e córtex desenvolvido. Do outro: 5 cm, com inúmeras patas, duas asas e resistente à radiação.
O animal irracional, mais precisamente, um inseto, balançava suas antenas possivelmente na tentativa de localizar o motivo pelo qual o ambiente havia mudado bruscamente. Imóvel, tal qual uma pessoa que teme novos passos quando as súbitas mudanças afetam consideravelmente sua percepção e situação no mundo, parecia refletir sobre qual a próxima atitude a tomar neste ambiente hostil.
Por sua vez, o animal racional, especificamente, um mamífero, gritava instintivamente e freneticamente por um chinelo. Em poucos instantes, seu irmão M que estava no quarto ao lado, veio assustado prestar assistência e observou o invertebrado. Mecanicamente, tirou seu enorme RIDER 42 e arremessou sobre o chão.
Ao menor sinal de movimento, o morador de esgotos rastejou rapidamente para fora do tapete. Contudo, o calçado lançado explodiu de raspão em sua preta carapaça e o impacto lhe deixou de cabeça para baixo.
Totalmente indefesa, assim como as crianças nas guerras procurando avidamente por seus pais em meio ao fogo cruzado, o diminuto ser mexia desesperadamente suas patas para fazer seu abdômen voltar a tocar o chão. Era como um bebê no berço que mexia suas pernas e braços e soluçava lágrimas para pedir alimento e proteção.
Enquanto isso, M sugeriu que seu irmão P pegasse o outro chinelo do par e executasse o abominável, sujo, invasor de lares e habitante das profundezas.
Acometido pelo instinto ancestral impresso em seus genes e torpe de medo por um animal inofensivo, mas potencialmente perigoso, P tomou o chinelo em suas mãos.
Entretanto, faltava-lhe o ímpeto para desfechar o golpe fatal. Ao pensar no estresse pelo qual era diariamente submetido e não conseguia extravasar, sentiu uma brecha para descarregar suas frustrações no amor e no trabalho, causados pela timidez e medo do fracasso. Então, brandiu quase instantaneamente seu "tacape" sobre o ser vivo. Melhor dizendo, morto esmagado agora.
Passada a adrenalina e recobrando a consciência, P pensava como pudera cometer tamanha atrocidade. Baratas teriam alma? Teriam vida após a morte? Reencarnação ou Reencarapaçamento? Qual seria a dor que P sofreria caso fosse daquela espécie e levasse um golpe desferido com tanta fúria? E os familiares de B, o que sentiriam? Infelizmente, esses questionamentos foram passageiros na mente de P, pois seus pais logo vieram para varrer o intruso e jogá-lo no lixo.
P desceu a sala e ligou a TV. Notícia internacional do dia: míssil lançado contra terroristas erroneamente atinge bairro residencial em Bagdá. 15 mortos recolhidos ou "varridos" dos escombros pelo medo da diferença. Sem tempo para raciocinar sob a relação entre os dois fatos, já era mostrada a previsão do tempo...

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